O projeto “RAP COM MPB” completa um ano de lançamento e segue ecoando como um dos trabalhos mais originais a sair do Vale do Aço. Criado por NegroMar, artista natural do Planalto, em Ipatinga, o álbum funde Rap, MPB, funk e ancestralidade em uma sonoridade que é, ao mesmo tempo, raiz e vanguarda. Em entrevista exclusiva ao Portal Agora Vale do Aço, Negromar abre o jogo sobre o processo criativo, a força do território e o que significa lançar um trabalho autoral em uma cena que pulsa, mas ainda enfrenta barreiras. Confira a conversa.
NegroMar, completou-se um ano do lançamento do “RAP COM MPB” no Dia da Consciência Negra. Olhando para trás, o que esse projeto representou na prática na sua vida?
Representa muita coisa. Eu realmente vivi esse álbum, a vida que eu tinha antes, o processo de criação, tudo que eu vivenciei depois. Realmente eu vivi um turbilhão de coisas e emoções durante o Rap com MPB, mudança de emprego, de cidade, de carreira. Então foi uma loucura, uma correria, mas tudo muito bom, com seus desafios, é óbvio, mas o gosto de no final, ver que deu tudo certo, é maravilhoso, e valeu a pena.

O álbum tem uma sonoridade que passeia pelo rap, MPB, funk e até elementos pop. Como você encontrou essa assinatura sonora tão particular?
Cresci ouvindo uma plural trilha sonora da música popular lá em casa, com meus pais, então eu já carregava todas estas sonoridades comigo, elas já estavam ali guardadas. Após começar a consumir muito Rap, tudo isso se aflorou ainda mais, e foi aí que, no estúdio, uni ambas sonoridades, com um trabalho técnico impecavelmente feito pelo produtor Lz do Beat.

Em ‘Bota, Joga!’, você mergulha de cabeça na estética do funk. Uma das passagens mais marcantes é o ‘só no finin, só no finin’, que gruda na memória. Como essa referência ao ‘finin’, como estilo musical, dialoga com a sua missão de resgatar e valorizar as diferentes vertentes da cultura negra e periférica através do seu álbum?
Essa é uma das mais envolventes do álbum. Eu estava com entusiasmo para fazer um Funk, sabe? Adoro um funk, e naquele período, vinha consumindo muito um subgênero específico do funk chamado “fininha” – que é uma vertente estilística reconhecida dentro do gênero, assim como existem o funk consciente, o ostentação e o melody. Mostrei referências de artistas que produzem esse estilo para o meu produtor e expliquei como queria que a música soasse. A ideia era criar uma faixa de baile, que colasse no ouvido, dentro dessa estética sonora. Como meu produtor é da cena hip hop e não do funk, no sentido técnico não foi possível reproduzir fielmente o beat do funk fininha. Então, para manter a referência artística e homenagear essa vertente que tanto escutava, decidi incluir a expressão “só no finin”, uma menção direta e explícita ao subgênero musical. A receptividade foi maravilhosa justamente porque as pessoas identificaram essa influência e celebraram a conexão com a cultura do funk. É música de baile, feita para dançar e valorizar nossas raízes sonoras.

“MIM” é considerada por muitos a faixa mais visceral do projeto. O que mudou na sua relação com essa música desde que a compôs até hoje?
Boa pergunta! Antes eu a ouvia com o sentimento de quem tava ali, vivendo aquele processo, tá ligado, protagonista de tudo aquilo, então tudo, eu sentia muito. Hoje, já ouço num lugar de quem esteve e que passou, e isso é muito bom, saber que situações vem, vão, são superadas. Mim é uma canção maravilhosa, sempre será uma canção que me ensina o que fazer, pra onde voltar, pra onde se abrigar, guardo-a com muito carinho em meu coração.

A capa do álbum traz elementos muito simbólicos. Pode nos contar sobre as escolhas visuais que representam o “RAP COM MPB”?
Rap com MPB tem uma simbologia muito forte no sentido geográfico. Um álbum que fala de Ipatinga, do Vale do Aço, daquelas ruas e quebradas. Meu pai sempre teve a mestria de tirar fotos nossas, sempre registrava tudo, tudo mesmo. Nós temos milhares de fotos nossas, aquelas antigas, a criançada reunida. Quando surgiu a ideia da capa, queria muito fazer uma assim, que fosse esplêndida, impactante, mas que refletisse também essa subjetividade de uma fotografia de época, que se transpassa pelo tempo, e assim fizemos: um ensaio, na praça central do bairro, com elementos como igreja, casa, árvores, esses elementos se alinham ao ambiente geográfico e criam laços, memórias, significados. Por isso, fazê-la e pensá-la nessa perspectiva, foi fundamental, porque se entrelaça a ideia de que o álbum veio pra ficar, se comunicando com o passado, com o presente e com o futuro, e nisto, entra um trabalho fundamental da Clara e Willa, da produtora Cultura Nomadd, que conduziram todo este processo técnico.

Como morador do Planalto em Ipatinga, de que maneira seu território moldou a estética e as narrativas do álbum?
Me moldou de forma completamente abrangente. Todas as músicas eu falo do P.L (Planalto), das pessoas, das vivências que eu tive ali, então não existiria Rap com MPB sem tudo isso, o meu território foi onde eu construí minha bases, cultural, familiar, afetiva, então eu diria que é 100% de tudo que fiz artisticamente veio dali.
Existe um fio condutor espiritual muito forte em todas as faixas. Como foi o processo de traduzir essa conexão com a ancestralidade em composições?
Esse processo se materializou de forma muito natural, porque o próprio álbum é fruto de um anseio ancestral, eu diria. Eu não vinha passando por um momento bom, no sentindo de saúde mental, então o que eu vejo é que a ancestralidade me pegou no colo e deu-me a música como oportunidade de escuta e fala, de botar pra fora, não que de dentro saísse, de cantar pra extravasar. Então tudo fluiu de uma forma muito natural, porque tava escrito pra acontecer.
Se tivesse que escolher uma música do álbum para apresentar a alguém que nunca te ouviu, qual seria e por quê?
Neste momento de vida, colocaria Canto Pra Extravasar. Acho que nela eu tenho um porte de negrão sabe, com desbravamento, animação, postura, força pra correr atrás e fazer acontecer, características que são bem pulsantes neste meu momento de vida aqui em Belo Horizonte.
O que mais te surpreendeu nesse primeiro ano de circulação do álbum? Teve alguma reação ou história de fã que te marcou especialmente?
Ver que as pessoas abraçaram meu álbum foi algo que me surpreendeu e me deixou muito, muito feliz. Ser reconhecido pelas pessoas no Vale do Aço, vê-las dizer que gostam das minhas músicas, é algo muito doido, porque nunca tinha imaginado isto. Tenho várias histórias, mas uma que marca é que eu me mudei do interior pra capital meses antes do lançamento. Em BH, trabalhei inicialmente numa pizzaria, no drive thru, como eu entregava diariamente centenas de lanches, imprimir vários qr codes das minhas músicas e comecei a distribuir juntamente na entrega dos lanches, isso me proporcionou rodar, de forma orgânica, bastante o meu trabalho em Belo Horizonte, com muita gente ouvindo, se identificando, me seguindo nas redes sociais, foi muito legal!
Como você vê a cena musical independente de Ipatinga e região hoje? O que “RAP COM MPB” acrescenta a esse cenário?
Vejo de forma positiva, poderia listar aqui uma infinidade de artistas que tem feito trabalhos maravilhosos, que nascem do underground, do coletivo, do sonho. São muitos. Em contrapartida, vejo que falta estrutura, acesso, políticas públicas. Às vezes, estamos diante de grandes estrelas, mas que são esquecidas, menosprezadas, invisibilizadas por um projeto político de cidade careta, que não valoriza suas potências. Falta acesso e formação, e o capital cultural fica concentrado na maioria das vezes de entidades que possuem CNPJ e influência política, não necessariamente partidária, enquanto quem produz na rua, no underground, vive sempre num processo de sufocamento.
Para encerrar: que mensagem você gostaria que permanecesse com quem escuta “RAP COM MPB” um ano após seu lançamento?
Que a Lua cheia continue iluminando todo o Planaltão, Rap com MPB é passado, presente e futuro. O futuro é logo ali!
PARA FINALIZAR
“RAP COM MPB” é mais do que um álbum; é um registro afetivo de um artista que carrega o Vale do Aço no som e na história. NegroMar segue construindo sua trajetória a partir das ruas do Planalto, provando que a potência da região ecoa longe, e que a cena independente, mesmo com desafios, não para de criar. O projeto está disponível em todas as plataformas digitais.
